segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

A vida depois do fim


Histórias da Longevidade - Entusiasme-se com a vida!


Manuel tinha 82 anos, reformara-se há 16 anos. Vivia numa casa de cinco assoalhadas, a mesma casa para onde foi morar pouco depois de se casar. A sua vida foi ser professor e pai.  Ser professor obrigara-o a ser eternamente estudante, ou pelo menos, pensando assim, julgava enaltecer a seus olhos o que considerava uma profissão desvalorizada. Professor do Liceu, como se dizia no seu tempo, mas ainda chegou ao tempo de ser categorizado e chamado de professor do Ensino Secundário. Era “sôtor” para os alunos. Tinha saudades das aulas de Matemática que preparava para, logo de manhã, quase todos os dias da semana, enfrentar as suas turmas. Enfrentar nem sempre era o termo aplicável, porque também teve alunos interessados e que acompanhavam as aulas e punham questões. Como tinha sido difícil explicar-lhes que o seu papel não era julgá-los, mas sim ensinar, ensiná-los a pensar matemática. Raramente conseguiu transmitir o que era o pensamento matemático. Os alunos decoravam teoremas e regras, o que era contrário ao pensamento matemático. Tinha de classificar melhor os que obtinham resultados certos, não os que pensavam. Nem aos filhos tinha conseguido explicar.

De tarde dava explicações para conseguir equilibrar a economia da casa e porque alguns alunos eram desafiantes, o que lhe dava gosto. Só mesmo com raros explicandos conseguia ir mais além do que ensinar a deduzir, mas com dificuldade saía do programa escolar. O que esperavam dele como explicador, tanto alunos como pais, eram bons resultados finais, o que só queria dizer boas notas. Era frustrante quando se queria dar mais do que isso.

Nunca conseguiu explicar o que podia trazer de bom para a vida aprender a pensar. Agora, sozinho, na sua casa enorme, pouco acolhedora e descuidada, pensava às vezes no assunto e não pensava em nada. O tempo corria e o pouco que lhe despertava interesse, não era muito. Quer dizer, supostamente tinha muitos interesses, os livros e cedês à sua volta, como se encarnasse o intelectual atento que aparentava uma vida estimulante e preenchida, contrária ao vazio paralisante que o devastava sem se ver. O pensamento semi-congelado povoava-se de memórias fragmentadas, com evocações muito elementares que eram acompanhadas de sentimentos muito pouco elaborados. Tinha ao seu lado livros que nunca lia, que faziam parte da representação que mascarava a pobreza mental. Quando recebia visitas punha em ação esta representação que falseava o seu estado de espírito, em que ele próprio queria e acabava por acreditar. Os netos apareciam e olhavam aqueles livros, na mesa, ao lado da sua poltrona. Admiravam o avô como um homem peculiar, que lhes tinha ensinado xadrez e ouvia alto opera, cantarolando árias ou trauteando excertos musicais. Os filhos, com maior proximidade e cumplicidade intelectual, eram capazes de se aventurarem a observações sobre as matérias dos livros expostos, a que Manuel respondia com tiradas breves. O jogo funcionava e não só era convincente para todos como a ninguém interessava desmascará-lo. Manuel convencia-se, assim, das suas capacidades, o que o valorizava. A família assumia que o pai tinha uma vida preenchida, o que apagava a necessidade de se preocuparem com ele, sobretudo em tempo de isolamento devido à pandemia. Mas, Manuel no seu vazio reconsiderava e nesses momentos de maior consciência de si vinha-lhe à ideia o pensamento matemático e a incapacidade para o transmitir, mas, agora também a incapacidade para dele fazer uso.


breves observações 


A maioria de nós, apesar da poluição, dos estilos de vida pouco saudáveis, do isolamento, das pressões sociais e laborais vive muitos anos e trabalhamos ainda mais. Mas tem-se a impressão que, apesar do maior conforto e condições, não somos senhores das nossas vidas. Temos propósitos, mas esquecemo-nos de nos perguntar o que é que eu quero para mim, o que é que eu gosto, e acima de tudo o que vou fazer do tempo da reforma. A reforma podem ser hoje muitos anos da nossa vida, e podemos decidir não fazer nada. Não fazer nada, como assim?

É um desleixo não prepararmos a reforma. Vamos agarrar-nos às glórias passadas, às memórias, criar um conjunto de afazeres que nos fornecem a ilusão de que estamos ativos e com um projeto de vida e caímos num abandono mental e físico. Neste momento da sua vida pode finalmente fazer o que gosta, o que quer fazer, sem ter de provar ou prestar contas a outros. É um tempo único, um tempo que é seu. Tem consciência da tamanha liberdade que tem nas mãos? Vai saber usar este privilégio ou desaproveitá-lo? O caminho que escolher vai decidir o que será. Vai transformar-se num ser que deixa o tempo correr, sem muitos interesses, com um vazio que vai minando o seu pensamento até que este fique congelado, desleixando o corpo e fornecendo campo para que as doenças possam vingar. Vai permitir que a sua energia vital definhe. Procure energia para reagir e vai ver que lhe traz mais energia. Mais energia, mais satisfação e sobretudo um sentido de futuro. Há amanhã!


Conclusão 

Cada um de nós tem que agarrar a própria vida, mas seremos capazes disso?



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