segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Somos todos criativos.


Histórias da Longevidade - Entusiasme-se com a vida!


Era o aniversário de Manuel, o avô e professor de Matemática que faria 83 anos. Vivia sozinho entre livros não lidos, discos não ouvidos, memórias que se atropelavam como flashes na indolência de tardes passadas naquele cadeirão. Os filhos marcaram um jantar num restaurante com eles, netos e bisnetos. Não podiam ser mais de dez devido à pandemia, mas eram exatamente dez, pois faltaram alguns. O seu neto João, chamado por todos de Jota, menos pelo avô que insistia em chamá-lo pelo seu nome, viria buscá-lo para o levar ao jantar. Foi João que se ofereceu, porque assim aproveitava para falar com o avô e convidá-lo para a inauguração de uma vídeo-instalação no Museu onde estagiava no âmbito do seu Curso de História de Arte. Era o presente que o neto oferecia ao avô. Subiu a casa do avô e encontrou-o na sala ao lado da resma de livros, encimada pelo mesmo livro de que o avô lhe falara em tempos, como se nada tivesse mexido desde a última vez que o visitara. Jota perguntou ao avô se ainda estava a ler o mesmo livro sobre o qual tinham falado no último encontro. Manuel envergonhado por ter sido apanhado comentou que o ia lendo porque gostava muito do livro e lembrava-lhe a última visita do neto, mas não se descaiu sobre a esperança que tinha tido de continuarem a conversa encetada. Aí, o neto sorriu e convidou o avô para a inauguração da exposição no Museu na próxima quinta-feira, assim redimia-se de não o ter visitado e era simultaneamente o presente de aniversário. Exposição de quê, perguntou Manuel intrigado com este súbito convite. Jota explicou que era uma vídeo-instalação artística e que ele queria explicar ao avô o que se passava atualmente nas artes. Para sua surpresa, Manuel não era alheio ao conceito de vídeo-instalação e mostrou-se muito excitado com a ideia de ir a uma vernissage. Aos anos que não era convidado e que, portanto, não ia a esses acontecimentos. Durante o percurso para o restaurante o avô quis saber mais coisas sobre esse convite e essa exposição, ao que Jota acabou por confessar que se tratava de uma instalação sobre o tempo, o conceito de tempo na vida rotineira e apressada de hoje e de como isso influenciava a identidade de cada um. Entretanto chegaram ao restaurante e a conversa terminou ali.

Na quinta-feira seguinte Manuel apanhou um táxi para se encontrar com o neto no Chiado. Aos anos que não punha os pés na Baixa e também parecia que tinha sido há anos que não saía de casa, por causa da pandemia. Perguntava-se se ainda existia a barbearia onde cortava o cabelo, a barbearia Campos. Memórias de quando era novo e irreverente como o seu neto. Chegou cedo e sentou-se na esplanada da pastelaria Benard. Sabia-lhe bem estar ali. Não percebia porque é que não saía mais vezes, pois havia pouca gente e muitos cuidados, ou seja poucos perigos de contágio. Jota chegou e sentou-se na mesa do avô, que de imediato lhe começou a falar da exposição e dos artistas, mas sobretudo quis retomar a conversa que já tinham tido a propósito do livro “Gödel, Escher e Bach”. O neto surpreendeu-se mais uma vez com o avô que lhe explicou como a matemática podia perspectivar o tempo e a vida padronizada das pessoas, tema da exposição, essa forma de entender não queria necessariamente reduzir os acontecimentos a números e equações, mas antes a um processo mais elaborado de explorar o acontecimento. Foram para o Museu e Manuel entrou nas várias salas e em cada uma demorou-se longamente. Naquela vernissage podiam-se assimilar os trabalhos porque não havia a habitual confusão de convidados e rapazes a servirem bebidas e comidas. António, o curador da exposição, veio ter com Manuel, acompanhado de Jota que os apresentou. O curador ficou a saber que o avô de Jota tinha sido professor de Matemática e iniciaram uma conversa acerca das vídeo-instalações, que se foi acalorando quando Manuel observou que se aquilo era arte, ele era um artista. Esta observação assemelhava-se aos comentários simplórios de incompreensão do objecto artístico como “isto até eu fazia”, e Jota envergonhou-se do avô por momentos. António, que também tinha interpretado o comentário do avô como uma desvalorização da arte, não percebeu que este estava numa atitude provocadora e de imediato começou a explicar, senhor de si, o que representavam aqueles trabalhos. Contrariamente ao que António e Jota esperavam,  Manuel não só concordou, como se explicou, estabelecendo de novo paralelismos entre a Matemática e a Arte, ou antes entre o pensamento matemático e o processo de criação artístico. Em ambos, explicou, desenrolavam-se processos mentais complexos e semelhantes e não podemos entender a Matemática como a redução do caos a uma ordem, mas antes explorar o caos que é a vida, e perspectivá-lo de diferentes maneiras. António interessou-se muito pelas explicações de Manuel, que lhe pareciam inovadoras, e exclamou para Jota que deviam convidar o avô para uma conferência sobre este tema. Afinal, o que parecia ser novidade absoluta não era. 


breves observações 


Temos dificuldade em avaliar as nossas capacidades e tanto as podemos sobrevalorizar, como desvalorizar. Os outros também não o conseguem fazer e têm percepções subjectivas. Não há como pô-las à prova. O mantermos uma vida ativa e participativa permite entre outras coisas que consigamos conhecermo-nos e não só aferir os nossos limites, como dá-los a conhecer aos outros.

Os preconceitos de nós sobre nós próprios e dos outros sobre nós são frequentes, tanto com cariz depreciativo ou ao contrário. A prática de não nos revelarmos aos outros, bem como a de não sermos curiosos em relação aos outros, mantém-nos ignorantes e separa-nos.

Nesta história, Manuel nunca revelou ao neto os seus desejos e propósitos. O João, que também é Jota, não procurou desvendar o avô. O avô tinha conhecimentos e interesses próximos dos do neto, mas nenhum dos dois foi ao encontro dessas afinidades. Da conversa com o avô Jota percebe que Manuel tem perspectivas interessantes e sobre as quais ele nunca tinha pensado. O avô tem ambições que são concretizáveis quando tem uma posição mais ativa e faz parte do que lhe vai no interior. Avô e neto aproximam-se num projeto que interessa aos dois.

Nunca devemos subestimar os outros, mesmo que possamos ser diferentes.  A diferença é incentivo para descobrir outras facetas humanas e não forma de segregação. A desvalorização do outro pode não ser mais que uma tentativa de nos valorizarmos a nós próprios. 


Conclusão

Pode haver diferença na forma de pensar, mas será que somos assim tão diferentes?





segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Os Historiadores de Arte - Nós é que sabemos!

Histórias da Longevidade - Entusiasme-se com a vida!

Jota, 22 anos, subia a rua do Carmo em direção ao Museu, onde ia participar numa formação presencial sobre Curadoria. Era o seu grande sonho poder iniciar-se como Curador de uma exposição. Secretamente imaginava exposições e desde a obra do artista até à sala, tudo o que corria na sua cabeça lhe chegava a parecer real. A sua paixão era alicerçar conceptualmente uma obra, como se o artista lhe desse uma mensagem em hieróglifos e ele tivesse de o decifrar, de adivinhar as preocupações do artista, de o contextualizar e depois entregar-se a uma busca interpretativa para conseguir demonstrar ao público a razão da obra exposta. Era como um desenho de Escher, podíamos fazer várias leituras, atribuir significados às formas e apresentar um conteúdo, como se fosse uma tese. Tinha de a saber defender, o que era um desafio, que às vezes partia do nada e construía-se em diferentes caminhos. Escher, que engraçado, lembrava-lhe a conversa que tinha tido há tempos com o avô Manel. Pensou para si, como ele ficou contente por lhe ter dado atenção. Os velhotes não precisam mais do que um bocadinho de atenção, concluiu para si próprio. Coitados, agarrados a livros e ideias com mais de trinta anos, antes de ele ter nascido! E falam das coisas como se os outros perdem-se imenso por não terem lido aquele livro e não percebessem nada da vida, continuou nas suas cogitações. Como pode um velho perceber o Mundo de hoje se é tudo tão diferente do tempo deles. Aquele livro que ele falou, já nem se lembrava do título, mas era um calhamaço, e pensou o avô Manel é cá um cromo!

Chegou ao Museu. Ainda não tinha começado a formação. Jota encontrou a Bia e o Sá, colegas do curso de História de Arte. O tema sobre comunicação do sentido de uma obra de arte ou de uma exposição ao público. Traduzir o sentir e a ideia do artista, contextualizar a obra, despertar no público emoções, pensamentos, inquietações, leituras diferentes e o sentimento final de satisfação do visitante. No intervalo os três amigos discutiam a formação da manhã. Debateram a necessidade de explicar e transmitir aos outros pensamentos e emoções. Não deve cada pessoa fazer livremente a sua leitura, sem ser influenciada pela visão de terceiros. Um curador tinha que saber escolher, saber expor, apresentar o artista e contextualizar o trabalho, mas também tinha de explicar? Jota inclusivamente reprovou as visitas guiadas porque limitavam o campo de interpretação, condicionavam o que se via e nomeavam o que não tinha necessariamente de ser nomeado. Ya, faria mais sentido uma discussão depois da visita do que uma visita guiada, considerou Bia. Como é que se transmitia o significado de uma imagem a um público provavelmente muito heterogéneo? Não devia ser cada um a explorar e a descobrir a imagem? Sá reforçou com um exemplo simples, como é que eu iria explicar uma instalação aos meus avós, eles flipavam com a ideia, nunca compreenderiam, e os outros dois riram. Nisto, um dos curadores do Museu que estava perto e ouviu a conversa pediu desculpa e perguntou se eles não sabiam que as primeiras instalações artísticas ou assemblage, como também se chamavam, remontavam aos anos 20, 30 e 40 do século passado. Eram provavelmente mais velhas que os vossos avós, apesar de só se difundirem mais tarde. Acham que os vossos avós não percebem uma instalação artística se lhes for explicada. Da conversa resultou o desafio do António aos três estagiários de convidarem os respectivos avós a virem presencialmente à inauguração da próxima exposição do Museu, que seria dali a dias. Os três não deixaram de ficar perplexos com o desafio, mas aceitaram. Iriam os “velhos” perceber aquilo? 


breves observações 


Jota é o João da história anterior, mas não era o nome pelo qual o avô o tratava. Logo aqui o neto parece ter duas identidades, a que se apresenta e responde perante o avô, e a que tem para o Mundo. O que vai no pensamento do avô e no pensamento do neto sobre a mesma situação, a visita do João, é muito distinto. O avô convence-se da curiosidade do neto pelos seus interesses e acredita que daqui nasça uma cumplicidade entre os dois, que Manuel tanto ansiava. Jota acha que permitiu dar um momento de alegria ao avô por o visitar e não percebeu mais do que isto. Um acreditou que podia a partir daquele momento organizar futuro que tanto desejava, mas o outro só percepcionou o momento em si. Centraram-se nos seus desejos e desvalorizaram o que o outro sentia.

É muito importante pararmos e darmos tempo ao outro para se explicar e a nós próprios para perceber o que o outro pensa. Não paramos para ouvir o outro, mas também não nos abrimos para o outro.

O problema de fazer passar o sentido de uma obra de arte é idêntico à dificuldade intergeracional. Decifrar uma peça ou entender o outro passa pela mesmo processo que é a comunicação. Assim, criamos com facilidade preconceitos contra a obra de arte, mas pior é contra o outro, que é nosso próximo, que não conseguimos entender. Vamos gerar preconceitos relacionais que não têm razão de existir.

É verdade que as formas de comunicação e o seu valor também mudaram. Hoje dá-se mais importância à imagem e ao som do que à escrita e à leitura. A imagem e o som transmitem uma informação de forma imediata, enquanto a escrita e a leitura são mais vagarosas, mas também permitem a elaboração das ideias. Ou melhor, as ideias são elaboradas de forma diferente e isso origina processos de pensamento diferentes. Mas, tudo pode ser explicado.

Se nos dispusermos para o outro e o percebemos ganhamos com o conhecimento do outro, que é também o conhecimento de nós. Não podemos ser intolerantes e colocarmo-nos na posição de nós é que sabemos.

Será que as diferenças intergeracionais são assim tão grandes? Não ganhamos em perceber os outros? Isso será tão difícil e não pode ser ultrapassado com a curiosidade sobre o outro?


Conclusão

Os preconceitos impedem-nos de ouvir e chegar ao outro. Deixá-los cair é a maior dificuldade.



  Novas rotinas na nova normalidade Temas da Longevidade   Das consequências da pandemia a mudança da vida quotidiana foi provavelmente...