Somos todos criativos.
Histórias da Longevidade - Entusiasme-se com a vida!
Era o aniversário de Manuel, o avô e professor de Matemática que faria 83 anos. Vivia sozinho entre livros não lidos, discos não ouvidos, memórias que se atropelavam como flashes na indolência de tardes passadas naquele cadeirão. Os filhos marcaram um jantar num restaurante com eles, netos e bisnetos. Não podiam ser mais de dez devido à pandemia, mas eram exatamente dez, pois faltaram alguns. O seu neto João, chamado por todos de Jota, menos pelo avô que insistia em chamá-lo pelo seu nome, viria buscá-lo para o levar ao jantar. Foi João que se ofereceu, porque assim aproveitava para falar com o avô e convidá-lo para a inauguração de uma vídeo-instalação no Museu onde estagiava no âmbito do seu Curso de História de Arte. Era o presente que o neto oferecia ao avô. Subiu a casa do avô e encontrou-o na sala ao lado da resma de livros, encimada pelo mesmo livro de que o avô lhe falara em tempos, como se nada tivesse mexido desde a última vez que o visitara. Jota perguntou ao avô se ainda estava a ler o mesmo livro sobre o qual tinham falado no último encontro. Manuel envergonhado por ter sido apanhado comentou que o ia lendo porque gostava muito do livro e lembrava-lhe a última visita do neto, mas não se descaiu sobre a esperança que tinha tido de continuarem a conversa encetada. Aí, o neto sorriu e convidou o avô para a inauguração da exposição no Museu na próxima quinta-feira, assim redimia-se de não o ter visitado e era simultaneamente o presente de aniversário. Exposição de quê, perguntou Manuel intrigado com este súbito convite. Jota explicou que era uma vídeo-instalação artística e que ele queria explicar ao avô o que se passava atualmente nas artes. Para sua surpresa, Manuel não era alheio ao conceito de vídeo-instalação e mostrou-se muito excitado com a ideia de ir a uma vernissage. Aos anos que não era convidado e que, portanto, não ia a esses acontecimentos. Durante o percurso para o restaurante o avô quis saber mais coisas sobre esse convite e essa exposição, ao que Jota acabou por confessar que se tratava de uma instalação sobre o tempo, o conceito de tempo na vida rotineira e apressada de hoje e de como isso influenciava a identidade de cada um. Entretanto chegaram ao restaurante e a conversa terminou ali.
Na quinta-feira seguinte Manuel apanhou um táxi para se encontrar com o neto no Chiado. Aos anos que não punha os pés na Baixa e também parecia que tinha sido há anos que não saía de casa, por causa da pandemia. Perguntava-se se ainda existia a barbearia onde cortava o cabelo, a barbearia Campos. Memórias de quando era novo e irreverente como o seu neto. Chegou cedo e sentou-se na esplanada da pastelaria Benard. Sabia-lhe bem estar ali. Não percebia porque é que não saía mais vezes, pois havia pouca gente e muitos cuidados, ou seja poucos perigos de contágio. Jota chegou e sentou-se na mesa do avô, que de imediato lhe começou a falar da exposição e dos artistas, mas sobretudo quis retomar a conversa que já tinham tido a propósito do livro “Gödel, Escher e Bach”. O neto surpreendeu-se mais uma vez com o avô que lhe explicou como a matemática podia perspectivar o tempo e a vida padronizada das pessoas, tema da exposição, essa forma de entender não queria necessariamente reduzir os acontecimentos a números e equações, mas antes a um processo mais elaborado de explorar o acontecimento. Foram para o Museu e Manuel entrou nas várias salas e em cada uma demorou-se longamente. Naquela vernissage podiam-se assimilar os trabalhos porque não havia a habitual confusão de convidados e rapazes a servirem bebidas e comidas. António, o curador da exposição, veio ter com Manuel, acompanhado de Jota que os apresentou. O curador ficou a saber que o avô de Jota tinha sido professor de Matemática e iniciaram uma conversa acerca das vídeo-instalações, que se foi acalorando quando Manuel observou que se aquilo era arte, ele era um artista. Esta observação assemelhava-se aos comentários simplórios de incompreensão do objecto artístico como “isto até eu fazia”, e Jota envergonhou-se do avô por momentos. António, que também tinha interpretado o comentário do avô como uma desvalorização da arte, não percebeu que este estava numa atitude provocadora e de imediato começou a explicar, senhor de si, o que representavam aqueles trabalhos. Contrariamente ao que António e Jota esperavam, Manuel não só concordou, como se explicou, estabelecendo de novo paralelismos entre a Matemática e a Arte, ou antes entre o pensamento matemático e o processo de criação artístico. Em ambos, explicou, desenrolavam-se processos mentais complexos e semelhantes e não podemos entender a Matemática como a redução do caos a uma ordem, mas antes explorar o caos que é a vida, e perspectivá-lo de diferentes maneiras. António interessou-se muito pelas explicações de Manuel, que lhe pareciam inovadoras, e exclamou para Jota que deviam convidar o avô para uma conferência sobre este tema. Afinal, o que parecia ser novidade absoluta não era.
breves observações
Temos dificuldade em avaliar as nossas capacidades e tanto as podemos sobrevalorizar, como desvalorizar. Os outros também não o conseguem fazer e têm percepções subjectivas. Não há como pô-las à prova. O mantermos uma vida ativa e participativa permite entre outras coisas que consigamos conhecermo-nos e não só aferir os nossos limites, como dá-los a conhecer aos outros.
Os preconceitos de nós sobre nós próprios e dos outros sobre nós são frequentes, tanto com cariz depreciativo ou ao contrário. A prática de não nos revelarmos aos outros, bem como a de não sermos curiosos em relação aos outros, mantém-nos ignorantes e separa-nos.
Nesta história, Manuel nunca revelou ao neto os seus desejos e propósitos. O João, que também é Jota, não procurou desvendar o avô. O avô tinha conhecimentos e interesses próximos dos do neto, mas nenhum dos dois foi ao encontro dessas afinidades. Da conversa com o avô Jota percebe que Manuel tem perspectivas interessantes e sobre as quais ele nunca tinha pensado. O avô tem ambições que são concretizáveis quando tem uma posição mais ativa e faz parte do que lhe vai no interior. Avô e neto aproximam-se num projeto que interessa aos dois.
Nunca devemos subestimar os outros, mesmo que possamos ser diferentes. A diferença é incentivo para descobrir outras facetas humanas e não forma de segregação. A desvalorização do outro pode não ser mais que uma tentativa de nos valorizarmos a nós próprios.
Conclusão
Pode haver diferença na forma de pensar, mas será que somos assim tão diferentes?