terça-feira, 13 de abril de 2021

 


Novas rotinas na nova normalidade


Temas da Longevidade 


Das consequências da pandemia a mudança da vida quotidiana foi provavelmente uma das que mais marcou as nossas vidas. Mudou-nos as rotinas mais banais, os hábitos mais corriqueiros e obrigou-nos a valorizar aquilo que tínhamos como adquirido, e que pela perda percebemos agora a sua importância. A falta obriga a repensar o que nos é importante, a compreender porque valores regemos a nossa vida e a desvalorizar o supérfluo que tanto prezávamos. Leva-nos para a defesa do essencial na vida.

Refazer novas rotinas é um desafio que permite criarmos um quotidiano com mais sentido, mais sentido face à descoberta de novas prioridades pessoais e de contribuição para o bem comum. As rotinas são muito importantes com a progressão da idade porque organizam a vida diária em função das nossas necessidades e prazeres. Dão-nos conforto e satisfação, sem querer necessariamente dizer acomodação. Sabe bem aquele café de manhã com a leitura daquele jornal, como sabem bem os hábitos que criamos, onde o simples cheiro a maresia ou alfazema nos dá satisfação, como o toque, o cheiro e a voz dos que nos são familiares. Estes pequenos nadas preenchem, sem o notarmos, a nossa vida e incorporam a nossa identidade, ajudam-nos a aceitar contrariedades e reforçam a nossa resiliência.

As rotinas são tanto mais importantes quanto as nossas capacidades cognitivas vão decrescendo. Constituem a rede de referências de cada um e vão-se mantendo, mesmo quando perdemos a memória ou há interferências no nosso pensamento. Um dos objetivos da organização de rotinas é a nossa saúde, pelo que estruturar rotinas saudáveis pode ser da maior importância para a nossa qualidade de vida, desde a alimentação ao sono, ao exercício físico e mental. Se estas práticas acontecerem de forma rotineira não são imposições difíceis e por isso mesmo a reconstrução de rotinas não só é desejável, como deve ser feita de forma criteriosa. Neste aspecto o apoio a reestruturar rotinas pode ser muito vantajoso. Esse apoio define-se com a própria pessoa e/ou com aqueles que os ajudam, desde os familiares, a prestadores de cuidados ou até terapeutas.

As rotinas não devem ser imposições desagradáveis, correndo o risco de não se organizarem como práticas quotidianas e serem esquecidas ou substituídas por outras com menos benefício. Sabemos que a memória de um gesto ou ação pode perdurar mesmo que outro tipo de memória se dissipe. Se esse gesto ou ação estiver ligado a estímulos agradáveis e se relacionar com fatores desencadeantes, com mais facilidade vai perdurar. A razoabilidade da sua proposta e compreensão da mesma também é fundamental. Assim, a própria escolha e implementação de novas rotinas também exige uma estratégia. Estratégia do próprio ou de quem o ajude a implementar o novo dia a dia.

O apoio de um profissional de saúde na elaboração de um quadro de rotinas pode ser vantajoso, mas nunca se deve sujeitar uma pessoa a um esquema saudável, devem-se adaptar sugestões saudáveis a cada pessoa. Em nome da saúde não podemos transformar a vida de alguém em mapa de regras a cumprir. Lutar pela vida e bem estar de uma pessoa e querer impor um mundo de regras que nos desligam da vida é um paradoxo. Mas, ainda pior que isso é transformar a vida num caminho de sujeição a pequenos ditadores que arrasam a dignidade da pessoa em nome do seu bem.

O ritmo que queremos impor à nossa vida também pertence à forma como vamos escolher rotinas e regulá-las. A consciência do momento que estamos a viver, das nossas capacidades e dificuldades, do que esperamos da vida, das perspectivas de futuro, vão condicionar o que queremos do nosso quotidiano.

Reestruturar o nosso dia a dia com mais razão e satisfação é uma conquista pessoal.


“Mudar de rotinas e repensar a vida não lhe parece uma aventura estimulante?”

segunda-feira, 5 de abril de 2021

Não se deixe aperrear! 


Temas da Longevidade 


Sempre gostei muito da expressão aperrear. É uma expressão que caiu em desuso, muito pouco usada em meio urbano e ouvia-a mais na boca de mulheres que de homens. É uma palavra que encerra em si um conceito mais lato que o de inibição ou fecho da pessoa sobre si mesma, representa perda da pessoa em si mesma, perda de identidade, limitação do seu Eu. Quando alguém dizia “sinto-me aperreada” percebia-se que falava de um estado de si em que deixara de ser a pessoa que costumava ser. Trago este conceito à baila para falar de um estado da pessoa em que ela se perde numa clausura vazia sobre si própria, não se reconhece, impede-se de iniciativa, sente o seu Mundo menor que ela própria. Aperrear é antónimo de expandir, de se alargar na conquista de espaço, espaço físico subjetivo, abarcamos mais mundo, e espaço mental, capacidade de pensar e entender presente, passado e construir futuro. Podemos usar outra imagem muito popular como fechar-se ou sair da concha. Estes dois movimentos contrários aplicam-se à compreensão de muitos dos nossos estados de espírito. Vou dar dois exemplos de situações contrárias, o confinamento em casa e o deserto, em que em ambos os casos podemos viver estes dois estados de espírito. No confinamento podemos ficar aperreados em nossas casas, limitados a algumas tarefas domésticas, a eventual teletrabalho, a colocarmo-nos em frente à televisão ou a cochilar no sofá. Invade-nos um vazio desesperante, anulamo-nos como pessoa que somos. Interessa-nos brevemente uma ou outra ocupação, mas enfastiamo-nos da mesma. Temos pouca disponibilidade para os outros, perdemos a nossa criatividade e possível generosidade. Não conseguimos encontrar-nos a nós mesmos. O nosso pensamento é pobre e circular. Na melhor das hipóteses somos assaltados pela tristeza e por sentimentos de abandono. Mas, pode nem haver emoções ou instalar-se uma ansiedade que nos invade sem que saibamos de onde ela vem.

Ao contrário podemos instalar-nos em casa com projetos pessoais, desde estudar uma matéria até iniciar uma atividade que toda a vida gostaríamos de realizar e nunca tivemos oportunidade. Agarramos iniciativas com interesse ou até paixão e sentimo-nos preenchidos. Estamos abertos aos outros, ao Mundo, temos esperança e somos capazes de dar e receber, conseguimos construir e ser generosos. Sentimo-nos nós mesmos com confiança e não é o confinamento que nos impede de pensar e sentir.

Imagine-se na imensidão do deserto onde podemos estender os braços com vontade de abraçar não o Mundo, mas o Universo, ou ao contrário encolher-se com medo e aniquilar a alegria de se expandir. Não é a ocupação que impede que nos fechemos, é a forma como nos ocupamos, como agarramos a vida.

Acontece apercebermo-nos que não conseguimos sair do impasse de vazio e retração sobre nós próprios. Nesse caso peça ajuda.


“Quer aperrear-se ou agarrar a vida?”


 Quem sou eu? Quem és tu?

Histórias da Longevidade - Esquecemo-nos de nós 


A minha consulta de Psicogeriatria no Hospital era muito concorrida, às vezes difícil de gerir, porque havia doentes mal referenciados ou com enganos. A consulta era feita em equipa, tinha vários procedimentos e tinha de ser muito bem estruturada para dar resposta aos doentes, obrigando a uma dinâmica a que a instituição não estava habituada. Nesse dia, particularmente concorrido, apareceu um doente de maca, vindo do Alentejo, trazido pelos Bombeiros e acompanhado pela família. A situação em si era espalhafatosa porque aquela maca, com bombeiros e acompanhantes, alterava completamente o estado da sala de espera, com constrangimento para as restantes pessoas que aguardavam. Era uma primeira consulta e fui informado que o doente não andava, nem falava, pelo que tinha de o observar na maca. Tal situação estava fora de questão porque não há razão para observar doentes em maca, salvo raras excepções, e priveligio sempre a consulta em face a face. A consulta é sempre com a pessoa que merece sempre um contacto direto, mas é frequente a relutância ou até oposição, que subentende que um doente com dificuldades cognitivas, da memória ou outras, não tem capacidade para falar de si. Mas, então como é que o observamos?

Dei indicação para passarem imediatamente o paciente, que se chamava Luís, para uma cadeira de rodas e para retirarem a maca, o que aconteceu, afinal, sem dificuldade. Quando chamei o doente entrou o Sr. Luís, a mulher Joaquina e a nora Ana. Mulher e nora começaram imediatamente a falar, antes mesmo de lhes por questões, comentando que Luís não falava há quase dois anos e tinha perdido o andar. Mesmo depois de eu começar a falar com o doente, continuaram a falar de forma cúmplice entre elas, desdenhando a minha iniciativa de falar com Luís. Perguntei de que terra era, e ele imediatamente respondeu. A terra tinha um nome curioso e por isso deixei sair uma exclamação de espanto jocosa e indaguei onde ficava. Luís não reagiu à minha graça, mas começou a explicar onde ficava a terra. Joaquina e Ana suspenderam a conversa delas, voltaram-se para ele e exclamaram “mas ele fala!” e de seguida começaram a perguntar-lhe de rajada “quem sou eu?”; “como é que me chamo?”; “quem és tu?”. Luís não lhes respondia e ora ficava calado, ora respondia de forma lacónica às minhas perguntas. As duas mulheres ficaram alvoraçadas como se tivessem sido apanhadas numa mentira, chegando a comentar “até me deixas ficar mal vista!”.


breves comentários 


A desvalorização e infantilização de uma pessoa mais velha por outra, mas sobretudo por quem é próximo ou lhe presta cuidados é mais comum do que parece e sentida de forma muito agressiva. Encerra em si um cunho paternalista, podendo apresentar-se como uma aproximação afetuosa, mas que é em si depreciativa e faz ressaltar a incapacidade da pessoa em causa. Este é um problema que observamos nos prestadores de cuidados que inadvertidamente estão a lesar as pessoas que cuidam. Compreender a pessoa que temos diante de nós é importante até para a forma como a tratamos. Compreender a pessoa passa por perceber a sua identidade, e devolver identidade a uma pessoa vulnerável é primordial para a fazer sentir-se mais senhora de si.

A perda da posição de prestígio de Luís e a sua entrada num processo progressivo de adoecer é dramaticamente agravada pela forma desvalorizada como o tratam, onde não só o infantilizam, como sublinham a sua incapacidade com perguntas básicas. Se atentarmos à personalidade e ao processo depressivo e de doença do Sr. Luís, tal como é descrito na história “Gostar de si”, percebemos como este tratamento da família o deixa humilhado, revoltado e só, ao ponto de deixar de falar à família. Esta sua atitude conduziu a um erro de diagnóstico, mas ela mesma pode vir a desencadear terreno para eclodir uma doença degenerativa. Este doente não desenvolveu uma doença de Alzheimer, mas não deixou de vir a padecer mais tarde de compromisso cognitivo por doença vascular.


Conclusão   


Se subestimarmos o outro vamos conseguir percebê-lo como pessoa?


  Novas rotinas na nova normalidade Temas da Longevidade   Das consequências da pandemia a mudança da vida quotidiana foi provavelmente...