terça-feira, 13 de abril de 2021

 


Novas rotinas na nova normalidade


Temas da Longevidade 


Das consequências da pandemia a mudança da vida quotidiana foi provavelmente uma das que mais marcou as nossas vidas. Mudou-nos as rotinas mais banais, os hábitos mais corriqueiros e obrigou-nos a valorizar aquilo que tínhamos como adquirido, e que pela perda percebemos agora a sua importância. A falta obriga a repensar o que nos é importante, a compreender porque valores regemos a nossa vida e a desvalorizar o supérfluo que tanto prezávamos. Leva-nos para a defesa do essencial na vida.

Refazer novas rotinas é um desafio que permite criarmos um quotidiano com mais sentido, mais sentido face à descoberta de novas prioridades pessoais e de contribuição para o bem comum. As rotinas são muito importantes com a progressão da idade porque organizam a vida diária em função das nossas necessidades e prazeres. Dão-nos conforto e satisfação, sem querer necessariamente dizer acomodação. Sabe bem aquele café de manhã com a leitura daquele jornal, como sabem bem os hábitos que criamos, onde o simples cheiro a maresia ou alfazema nos dá satisfação, como o toque, o cheiro e a voz dos que nos são familiares. Estes pequenos nadas preenchem, sem o notarmos, a nossa vida e incorporam a nossa identidade, ajudam-nos a aceitar contrariedades e reforçam a nossa resiliência.

As rotinas são tanto mais importantes quanto as nossas capacidades cognitivas vão decrescendo. Constituem a rede de referências de cada um e vão-se mantendo, mesmo quando perdemos a memória ou há interferências no nosso pensamento. Um dos objetivos da organização de rotinas é a nossa saúde, pelo que estruturar rotinas saudáveis pode ser da maior importância para a nossa qualidade de vida, desde a alimentação ao sono, ao exercício físico e mental. Se estas práticas acontecerem de forma rotineira não são imposições difíceis e por isso mesmo a reconstrução de rotinas não só é desejável, como deve ser feita de forma criteriosa. Neste aspecto o apoio a reestruturar rotinas pode ser muito vantajoso. Esse apoio define-se com a própria pessoa e/ou com aqueles que os ajudam, desde os familiares, a prestadores de cuidados ou até terapeutas.

As rotinas não devem ser imposições desagradáveis, correndo o risco de não se organizarem como práticas quotidianas e serem esquecidas ou substituídas por outras com menos benefício. Sabemos que a memória de um gesto ou ação pode perdurar mesmo que outro tipo de memória se dissipe. Se esse gesto ou ação estiver ligado a estímulos agradáveis e se relacionar com fatores desencadeantes, com mais facilidade vai perdurar. A razoabilidade da sua proposta e compreensão da mesma também é fundamental. Assim, a própria escolha e implementação de novas rotinas também exige uma estratégia. Estratégia do próprio ou de quem o ajude a implementar o novo dia a dia.

O apoio de um profissional de saúde na elaboração de um quadro de rotinas pode ser vantajoso, mas nunca se deve sujeitar uma pessoa a um esquema saudável, devem-se adaptar sugestões saudáveis a cada pessoa. Em nome da saúde não podemos transformar a vida de alguém em mapa de regras a cumprir. Lutar pela vida e bem estar de uma pessoa e querer impor um mundo de regras que nos desligam da vida é um paradoxo. Mas, ainda pior que isso é transformar a vida num caminho de sujeição a pequenos ditadores que arrasam a dignidade da pessoa em nome do seu bem.

O ritmo que queremos impor à nossa vida também pertence à forma como vamos escolher rotinas e regulá-las. A consciência do momento que estamos a viver, das nossas capacidades e dificuldades, do que esperamos da vida, das perspectivas de futuro, vão condicionar o que queremos do nosso quotidiano.

Reestruturar o nosso dia a dia com mais razão e satisfação é uma conquista pessoal.


“Mudar de rotinas e repensar a vida não lhe parece uma aventura estimulante?”

segunda-feira, 5 de abril de 2021

Não se deixe aperrear! 


Temas da Longevidade 


Sempre gostei muito da expressão aperrear. É uma expressão que caiu em desuso, muito pouco usada em meio urbano e ouvia-a mais na boca de mulheres que de homens. É uma palavra que encerra em si um conceito mais lato que o de inibição ou fecho da pessoa sobre si mesma, representa perda da pessoa em si mesma, perda de identidade, limitação do seu Eu. Quando alguém dizia “sinto-me aperreada” percebia-se que falava de um estado de si em que deixara de ser a pessoa que costumava ser. Trago este conceito à baila para falar de um estado da pessoa em que ela se perde numa clausura vazia sobre si própria, não se reconhece, impede-se de iniciativa, sente o seu Mundo menor que ela própria. Aperrear é antónimo de expandir, de se alargar na conquista de espaço, espaço físico subjetivo, abarcamos mais mundo, e espaço mental, capacidade de pensar e entender presente, passado e construir futuro. Podemos usar outra imagem muito popular como fechar-se ou sair da concha. Estes dois movimentos contrários aplicam-se à compreensão de muitos dos nossos estados de espírito. Vou dar dois exemplos de situações contrárias, o confinamento em casa e o deserto, em que em ambos os casos podemos viver estes dois estados de espírito. No confinamento podemos ficar aperreados em nossas casas, limitados a algumas tarefas domésticas, a eventual teletrabalho, a colocarmo-nos em frente à televisão ou a cochilar no sofá. Invade-nos um vazio desesperante, anulamo-nos como pessoa que somos. Interessa-nos brevemente uma ou outra ocupação, mas enfastiamo-nos da mesma. Temos pouca disponibilidade para os outros, perdemos a nossa criatividade e possível generosidade. Não conseguimos encontrar-nos a nós mesmos. O nosso pensamento é pobre e circular. Na melhor das hipóteses somos assaltados pela tristeza e por sentimentos de abandono. Mas, pode nem haver emoções ou instalar-se uma ansiedade que nos invade sem que saibamos de onde ela vem.

Ao contrário podemos instalar-nos em casa com projetos pessoais, desde estudar uma matéria até iniciar uma atividade que toda a vida gostaríamos de realizar e nunca tivemos oportunidade. Agarramos iniciativas com interesse ou até paixão e sentimo-nos preenchidos. Estamos abertos aos outros, ao Mundo, temos esperança e somos capazes de dar e receber, conseguimos construir e ser generosos. Sentimo-nos nós mesmos com confiança e não é o confinamento que nos impede de pensar e sentir.

Imagine-se na imensidão do deserto onde podemos estender os braços com vontade de abraçar não o Mundo, mas o Universo, ou ao contrário encolher-se com medo e aniquilar a alegria de se expandir. Não é a ocupação que impede que nos fechemos, é a forma como nos ocupamos, como agarramos a vida.

Acontece apercebermo-nos que não conseguimos sair do impasse de vazio e retração sobre nós próprios. Nesse caso peça ajuda.


“Quer aperrear-se ou agarrar a vida?”


 Quem sou eu? Quem és tu?

Histórias da Longevidade - Esquecemo-nos de nós 


A minha consulta de Psicogeriatria no Hospital era muito concorrida, às vezes difícil de gerir, porque havia doentes mal referenciados ou com enganos. A consulta era feita em equipa, tinha vários procedimentos e tinha de ser muito bem estruturada para dar resposta aos doentes, obrigando a uma dinâmica a que a instituição não estava habituada. Nesse dia, particularmente concorrido, apareceu um doente de maca, vindo do Alentejo, trazido pelos Bombeiros e acompanhado pela família. A situação em si era espalhafatosa porque aquela maca, com bombeiros e acompanhantes, alterava completamente o estado da sala de espera, com constrangimento para as restantes pessoas que aguardavam. Era uma primeira consulta e fui informado que o doente não andava, nem falava, pelo que tinha de o observar na maca. Tal situação estava fora de questão porque não há razão para observar doentes em maca, salvo raras excepções, e priveligio sempre a consulta em face a face. A consulta é sempre com a pessoa que merece sempre um contacto direto, mas é frequente a relutância ou até oposição, que subentende que um doente com dificuldades cognitivas, da memória ou outras, não tem capacidade para falar de si. Mas, então como é que o observamos?

Dei indicação para passarem imediatamente o paciente, que se chamava Luís, para uma cadeira de rodas e para retirarem a maca, o que aconteceu, afinal, sem dificuldade. Quando chamei o doente entrou o Sr. Luís, a mulher Joaquina e a nora Ana. Mulher e nora começaram imediatamente a falar, antes mesmo de lhes por questões, comentando que Luís não falava há quase dois anos e tinha perdido o andar. Mesmo depois de eu começar a falar com o doente, continuaram a falar de forma cúmplice entre elas, desdenhando a minha iniciativa de falar com Luís. Perguntei de que terra era, e ele imediatamente respondeu. A terra tinha um nome curioso e por isso deixei sair uma exclamação de espanto jocosa e indaguei onde ficava. Luís não reagiu à minha graça, mas começou a explicar onde ficava a terra. Joaquina e Ana suspenderam a conversa delas, voltaram-se para ele e exclamaram “mas ele fala!” e de seguida começaram a perguntar-lhe de rajada “quem sou eu?”; “como é que me chamo?”; “quem és tu?”. Luís não lhes respondia e ora ficava calado, ora respondia de forma lacónica às minhas perguntas. As duas mulheres ficaram alvoraçadas como se tivessem sido apanhadas numa mentira, chegando a comentar “até me deixas ficar mal vista!”.


breves comentários 


A desvalorização e infantilização de uma pessoa mais velha por outra, mas sobretudo por quem é próximo ou lhe presta cuidados é mais comum do que parece e sentida de forma muito agressiva. Encerra em si um cunho paternalista, podendo apresentar-se como uma aproximação afetuosa, mas que é em si depreciativa e faz ressaltar a incapacidade da pessoa em causa. Este é um problema que observamos nos prestadores de cuidados que inadvertidamente estão a lesar as pessoas que cuidam. Compreender a pessoa que temos diante de nós é importante até para a forma como a tratamos. Compreender a pessoa passa por perceber a sua identidade, e devolver identidade a uma pessoa vulnerável é primordial para a fazer sentir-se mais senhora de si.

A perda da posição de prestígio de Luís e a sua entrada num processo progressivo de adoecer é dramaticamente agravada pela forma desvalorizada como o tratam, onde não só o infantilizam, como sublinham a sua incapacidade com perguntas básicas. Se atentarmos à personalidade e ao processo depressivo e de doença do Sr. Luís, tal como é descrito na história “Gostar de si”, percebemos como este tratamento da família o deixa humilhado, revoltado e só, ao ponto de deixar de falar à família. Esta sua atitude conduziu a um erro de diagnóstico, mas ela mesma pode vir a desencadear terreno para eclodir uma doença degenerativa. Este doente não desenvolveu uma doença de Alzheimer, mas não deixou de vir a padecer mais tarde de compromisso cognitivo por doença vascular.


Conclusão   


Se subestimarmos o outro vamos conseguir percebê-lo como pessoa?


segunda-feira, 22 de março de 2021

Gostar de si


Histórias da Longevidade - Esquecemo-nos de nós 


O Sr. Luís era muito estimado na terra, fizera do negócio de gado a sua vida e o café, que tinha sido taberna e de que era dono, ajudara. Ajudara a estabelecer contactos, a concretizar negócios, a compor o final do mês até ser como agora a principal fonte de rendimento. O negócio do gado acabara, acabara a pouco e pouco, e Luís não suportou a ideia de limitar a sua atividade a taberneiro, tanto economicamente, mas sobretudo pela perda de prestígio. Ele considerava-se acima dos outros, tinha expediente, sabia negociar, passava a maior parte do tempo fora da terra, e por isso o alcunhavam de Já Foste, o que não diminuía a admiração dos conterrâneos. Quando precisavam de um conselho, de um empréstimo ou de outra ajuda, recorriam a ele. Até o Paxá, alcunha do primogénito da família Ferro, os mais ricos da terra, que viviam em Lisboa, fazia questão de mandar chamar Luís para o aconselhar e privilegiava-o com convites lá para casa. Passar a taberneiro era tirarem-lhe o tapete do chão, apesar de o Já Foste ficar assim mais próximo de todos e com uma vida mais sossegada, que a idade já pedia. A alcunha deixou de se aplicar, mas manteve-se e até passou a ser mais usada, com o convívio mais frequente com os demais. Tal intimidade em vez de lhe ser agradável incomodava-o, e desvalorizava-se por agora se achar como os outros. Ninguém percebia isto e Luís a ninguém confessava o que lhe ia na alma. Mantinha a mesma altivez, quase arrogância, mas não permitia que as amizades se estreitassem. Era para ele sinal de perda do seu estatuto. Para mais tinha a mulher sempre a procurá-lo a toda a hora, o que evitara na sua vida ativa. Estava acostumado a dar-lhe ordens, a exigir serviços, e atualmente era ela que exclamava “Luís vem jantar”, “Luís vai tomar os comprimidos” e pior que tudo “Luís levanta-te, deste em mandriar”. Não suportava ter de repartir poderes naquilo que era até há pouco o território dela, o mini-mercado e o café. Custava-lhe por isso levantar-se para ir atender clientes para o café, que também lhe davam ordens. Tinha o sentimento de ser criado de todos, até a nora Ana não se coibia de lhe fazer reparos. Sentia-se ferido e parecia que enquanto os outros ganhavam folgo com a sua desgraça, ele perdia interesse pela vida, mesmo desejo de viver, e a sua altivez curvava-se a uma velhice súbita e prematura. Nunca se viu com tal futuro, a sua estima nascia do apreço dos outros, da sua vaidade, não vinha de si. Afinal este homem nunca conseguira gostar de si por aquilo que era. Gostava de si por conseguir levar a melhor nos negócios, por ter dinheiro, e quando emprestava tinha o secreto prazer de confrontar o outro com a sua carência, não a alegria de poder ajudar. Como é que podia gostar de si se nem sabia quem era, e como é que podia gostar dos outros se se sentia humilhado por eles. Não conseguia gostar de ninguém. Cresceu nele um amargo constante, a intolerância, a revolta, o desejo de desaparecer, de morrer. Cada vez se levantava mais tarde para não ter de ir para o café, apesar da mulher o instigar a tal, o que só aumentava a vontade de a contrariar. Os longos períodos de cama e de sofá foram-lhe diminuindo a mobilidade, desculpa maior para não ir para o café. Isolava-se e perdia-se sozinho em angústias e recriminações, num sofrimento que ninguém imaginava, que com o tempo se foi anestesiando num vazio e indiferença para o que o rodeava. Todos comentavam “quem viu este homem e quem o vê agora!”, mas ninguém sabia a doença e alvitravam “é a velhice, dá cabo de uma pessoa!”. A mulher levou-o ao médico que lhe pediu análises, mas o Sr. Luís tinha bons resultados. Até o coração estava bem, apesar de se queixar de palpitações e apertos. Emagrecia e não tinha apetite. Marcaram uma consulta em Évora, a capital do distrito. Houve quem dissesse que ele tinha Alzheimer porque fazia confusões das poucas vezes que falava. Quase não andava.


breves comentários 


Porquê o título “Gostar de si” numa história que mostra um homem que, por várias circunstâncias de vida, se foi desinteressando e desligando de viver. Luís fez todo um percurso de vida em que vivia senhor de si, admirado e respeitado pelos outros. Isso enchia-o, mas era isso capacidade de gostar de si? O gosto que tinha por si próprio vinha da admiração dos outros e não de si. O que era um homem aparentemente sólido veio a revelar-se como frágil e dependente da imagem que os outros tinham dele. Quantas pessoas conhecemos assim, que a partir do momento em que perdem o seu estatuto profissional e/ou social não suportam mais a vida e deprimem-se. À depressão no envelhecer é dada pouca atenção na sua compreensão, atribuindo-se causas biológicas, que se pensa se resolvem simplesmente com antidepressivos, mas que têm raízes mais profundas. O resolvermos problemas nossos ao longo da vida, o sermos capazes de nos conhecer melhor, de percebermos o que somos e como somos na relação com os outros, ajuda a sermos capazes de termos mais consciência de nós próprios. E não é a forma como nos construímos conscientemente que permite conquistar consistência pessoal e auto-estima. Luís precisava dos outros para gostar de ele mesmo, mas quando se esvaneceu a imagem que ele precisava que os outros tivessem dele, deixou de gostar de si, ou provavelmente nunca chegou a gostar realmente de si. A isto chama-se personalidade narcísica, como Narciso, que no mito não gostava verdadeiramente dele, mas da imagem dele que lhe era dada pelo reflexo na água. No próprio mito Narciso morreria se alguma vez olhasse para a sua imagem. Luís era intolerante à forma como sentia que estava a ser olhado pelos outros. Não percebia que os outros o estimavam e que provavelmente até apreciavam a proximidade com ele. Luís era incapaz de aceitar essa proximidade, de gostar dos outros como pessoas, da mesma forma que não gostava suficientemente dele. 

Por esta história percebemos que o que somos como pessoas pode ser decisivo na forma como corre a nossa vida, até na doença. E o que nos parece irrelevante num momento da vida pode projetar-se no nosso futuro de forma determinante.


Conclusão

É importante conhecermo-nos para gostarmos verdadeiramente de nós. Se não gostamos de nós quem é que gosta?


 

segunda-feira, 15 de março de 2021

O Lugar


Histórias da Longevidade - Esquecemo-nos de nós 


Aquele pequeno comércio era a alma daquela terra, conjunto de casas à beira da estrada, com uma praça recuada, a igreja branca e simples, a casa que fora do Sr. Padre e que agora servia a paróquia, e passada uma esquina branca estava o café, que era tudo. Ou este tudo também tinha café, naquilo que já tinha sido chamado de taberna. Uma taberna precisa de taberneiro, ora quem tomava conta daquilo eram duas mulheres, assim fez-se café, com cadeiras em vez de bancos, mesas pequenas em vez de mesa corrida e balcão inox em vez do tampo de pedra cheio de segredos e histórias. A porta era coberta por um toldo que anunciava a marca do café. Ao lado havia outra porta que dava acesso à mercearia, que por arrumada em armários com prateleiras se chamava de mini-mercado. Tinha dois balcões em aço inoxidável, um para carnes e enchidos, outro maior tinha queijos, manteigas, leites e afins, ovos, pão, bolos e bolachas. Entre aquelas duas portas tudo da terra se sabia. Da primavera ao outono os visitantes davam mais movimento, e quando um estranho entrava as conversas paravam, para recomeçarem de forma desinteressada, a fingir que não ligavam nenhuma àquela criatura desconhecida, sobre quem havia pouco a dizer. O lugar tinha fama por vender o melhor pão da região, bem como bons enchidos. Quem tomava conta do comércio era Joaquina, mulher que apesar de carregar 73 anos de provações e sem ilusões na vida, se mostrava simpática e faladora, pronta a opinar sobre tudo o que os seus ouvidos alcançavam. Os seus muito ativos aparelhos fonatório e auditivo assentavam num corpo redondo, mas bastante enérgico e ágil para a idade. Como toda a mulher, desempenhava várias tarefas simultaneamente e com a destreza de um malabarista. Cortava e pesava fiambre, indicava o preço do queijo enquanto ouvia e comentava a má sorte da vizinha Adelaide que era desprezada pela filha, a Fitinhas. Quando acalmava o movimento e o lugar ficava vazio, Joaquina suspirava desamparada por sentir o vazio de não ter nada para fazer e atravessava a porta que ligava ao café onde estava Ana, sua nora, que tirava cafés com e sem cheirinho, vendia raspadinhas ou copos aos clientes que se instalavam para comentar e largar para o ar umas larachas. As duas mulheres com agilidade técnica de profissionais cúmplices trocavam as informações da terra e planeavam as refeições e os afazeres. Joaquina, se não chegava ninguém ao mini-mercado subia a casa, na porta ao lado, para olhar pelo marido que tinha Alzheimer. Era o que lhe diziam os médicos e ela estava certa disso. O Sr. Luís deixara de falar e mal se mexia, não colaborava com a mulher, tinha perdido o apetite e às vezes não comia nada ou quase nada. A dona Joaquina cuidava do marido logo de manhã, antes de abrir o mini-mercado, e dava uns saltos a casa durante o dia, apesar de ter o apoio pontual da sua nora para os cuidados de higiene do Sr. Luís. O trabalho era a sua salvação, não suportava estar muito tempo diante do marido no estado em que este estava. Na loja atendia, conversava, arrumava, fazia contas, anotava o que precisava de comprar e o que lhe deviam. Sabia tudo da terra. Rui, filho único do casal, era contabilista e bombeiro, e passava os dias todos no escritório ou no quartel, que ficavam numa das extremidades da terra, longe da mulher e da mãe, para não ter de as ouvir, mas longe também do pai, para não lhe pedirem nem auxílio nem favores.


breves considerações 


O lugar remete-nos para a importância de uma vida inclusiva tanto das pessoas que sofrem de uma doença, como dos que os apoiam. A urbe vai-se modificando e exigindo a adaptação dos que nela vivem, tanto nas grandes cidades como nos pequenos centros urbanos. As mudanças não têm evoluído para a participação de todos e o isolamento social é uma das características mais nocivas para o bem estar tanto das pessoas como do grupo urbano. O desaparecimento das tabernas, que deu lugar aos cafés, permitiu que a mulher e as várias gerações se cruzassem num lugar que era território dos homens adultos. Da mesma forma que houve uma evolução na inclusão do género, também houve a nível de gerações, o que permitiu um maior contacto entre as diversas fachas etárias, com o que isso tem de positivo, mas insuficiente. Nota-se nesta história quanto era importante o trabalho para Joaquina, pois aliviava-a do peso de cuidar do marido, e era a sua forma de estar ativa e incluída socialmente. Mas, quem tem doenças, sobretudo nos de mais idade, vê-se excluído pelos outros e tem pudor em aparecer. A exclusão social é um dos maiores males para a condição humana, mesmo que ligeira e discreta. É a desvalorização da pessoa perante os outros e para si própria. O confronto e aceitação entre as várias gerações, géneros, estados de saúde física e mental, e todas as diferenças que caracterizam a riqueza da espécie humana é condição essencial para o bem estar social, mas também pessoal. O Sr. Luís se tivesse mantido uma vida de maior participação social, seguramente estaria melhor de saúde e com capacidades mantidas, como veremos na continuação desta história.

Por isso é que se luta cada vez mais pela inclusão das pessoas, não só os de mais idade, capacitando-os a desempenharem papéis sociais ativos, como os que têm doenças degenerativas como a Doença de Alzheimer. Não há nada mais estimulante, física e mentalmente, que poder viver a vida em todas as suas dimensões. Porque é que perdemos o sentido de família e de tribo para um Mundo de grupos que excluem os que não lhe pertencem, mesmo que sejam seus iguais e até família. Aproveitar as capacidades de cada um valoriza a pessoa e permite que ela contribua para o bem comum. A isto chama-se Ecologia Social.


Conclusão 

Somos capazes de viver uns com os outros e aceitarmos as diferenças até na doença?


 

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Somos todos criativos.


Histórias da Longevidade - Entusiasme-se com a vida!


Era o aniversário de Manuel, o avô e professor de Matemática que faria 83 anos. Vivia sozinho entre livros não lidos, discos não ouvidos, memórias que se atropelavam como flashes na indolência de tardes passadas naquele cadeirão. Os filhos marcaram um jantar num restaurante com eles, netos e bisnetos. Não podiam ser mais de dez devido à pandemia, mas eram exatamente dez, pois faltaram alguns. O seu neto João, chamado por todos de Jota, menos pelo avô que insistia em chamá-lo pelo seu nome, viria buscá-lo para o levar ao jantar. Foi João que se ofereceu, porque assim aproveitava para falar com o avô e convidá-lo para a inauguração de uma vídeo-instalação no Museu onde estagiava no âmbito do seu Curso de História de Arte. Era o presente que o neto oferecia ao avô. Subiu a casa do avô e encontrou-o na sala ao lado da resma de livros, encimada pelo mesmo livro de que o avô lhe falara em tempos, como se nada tivesse mexido desde a última vez que o visitara. Jota perguntou ao avô se ainda estava a ler o mesmo livro sobre o qual tinham falado no último encontro. Manuel envergonhado por ter sido apanhado comentou que o ia lendo porque gostava muito do livro e lembrava-lhe a última visita do neto, mas não se descaiu sobre a esperança que tinha tido de continuarem a conversa encetada. Aí, o neto sorriu e convidou o avô para a inauguração da exposição no Museu na próxima quinta-feira, assim redimia-se de não o ter visitado e era simultaneamente o presente de aniversário. Exposição de quê, perguntou Manuel intrigado com este súbito convite. Jota explicou que era uma vídeo-instalação artística e que ele queria explicar ao avô o que se passava atualmente nas artes. Para sua surpresa, Manuel não era alheio ao conceito de vídeo-instalação e mostrou-se muito excitado com a ideia de ir a uma vernissage. Aos anos que não era convidado e que, portanto, não ia a esses acontecimentos. Durante o percurso para o restaurante o avô quis saber mais coisas sobre esse convite e essa exposição, ao que Jota acabou por confessar que se tratava de uma instalação sobre o tempo, o conceito de tempo na vida rotineira e apressada de hoje e de como isso influenciava a identidade de cada um. Entretanto chegaram ao restaurante e a conversa terminou ali.

Na quinta-feira seguinte Manuel apanhou um táxi para se encontrar com o neto no Chiado. Aos anos que não punha os pés na Baixa e também parecia que tinha sido há anos que não saía de casa, por causa da pandemia. Perguntava-se se ainda existia a barbearia onde cortava o cabelo, a barbearia Campos. Memórias de quando era novo e irreverente como o seu neto. Chegou cedo e sentou-se na esplanada da pastelaria Benard. Sabia-lhe bem estar ali. Não percebia porque é que não saía mais vezes, pois havia pouca gente e muitos cuidados, ou seja poucos perigos de contágio. Jota chegou e sentou-se na mesa do avô, que de imediato lhe começou a falar da exposição e dos artistas, mas sobretudo quis retomar a conversa que já tinham tido a propósito do livro “Gödel, Escher e Bach”. O neto surpreendeu-se mais uma vez com o avô que lhe explicou como a matemática podia perspectivar o tempo e a vida padronizada das pessoas, tema da exposição, essa forma de entender não queria necessariamente reduzir os acontecimentos a números e equações, mas antes a um processo mais elaborado de explorar o acontecimento. Foram para o Museu e Manuel entrou nas várias salas e em cada uma demorou-se longamente. Naquela vernissage podiam-se assimilar os trabalhos porque não havia a habitual confusão de convidados e rapazes a servirem bebidas e comidas. António, o curador da exposição, veio ter com Manuel, acompanhado de Jota que os apresentou. O curador ficou a saber que o avô de Jota tinha sido professor de Matemática e iniciaram uma conversa acerca das vídeo-instalações, que se foi acalorando quando Manuel observou que se aquilo era arte, ele era um artista. Esta observação assemelhava-se aos comentários simplórios de incompreensão do objecto artístico como “isto até eu fazia”, e Jota envergonhou-se do avô por momentos. António, que também tinha interpretado o comentário do avô como uma desvalorização da arte, não percebeu que este estava numa atitude provocadora e de imediato começou a explicar, senhor de si, o que representavam aqueles trabalhos. Contrariamente ao que António e Jota esperavam,  Manuel não só concordou, como se explicou, estabelecendo de novo paralelismos entre a Matemática e a Arte, ou antes entre o pensamento matemático e o processo de criação artístico. Em ambos, explicou, desenrolavam-se processos mentais complexos e semelhantes e não podemos entender a Matemática como a redução do caos a uma ordem, mas antes explorar o caos que é a vida, e perspectivá-lo de diferentes maneiras. António interessou-se muito pelas explicações de Manuel, que lhe pareciam inovadoras, e exclamou para Jota que deviam convidar o avô para uma conferência sobre este tema. Afinal, o que parecia ser novidade absoluta não era. 


breves observações 


Temos dificuldade em avaliar as nossas capacidades e tanto as podemos sobrevalorizar, como desvalorizar. Os outros também não o conseguem fazer e têm percepções subjectivas. Não há como pô-las à prova. O mantermos uma vida ativa e participativa permite entre outras coisas que consigamos conhecermo-nos e não só aferir os nossos limites, como dá-los a conhecer aos outros.

Os preconceitos de nós sobre nós próprios e dos outros sobre nós são frequentes, tanto com cariz depreciativo ou ao contrário. A prática de não nos revelarmos aos outros, bem como a de não sermos curiosos em relação aos outros, mantém-nos ignorantes e separa-nos.

Nesta história, Manuel nunca revelou ao neto os seus desejos e propósitos. O João, que também é Jota, não procurou desvendar o avô. O avô tinha conhecimentos e interesses próximos dos do neto, mas nenhum dos dois foi ao encontro dessas afinidades. Da conversa com o avô Jota percebe que Manuel tem perspectivas interessantes e sobre as quais ele nunca tinha pensado. O avô tem ambições que são concretizáveis quando tem uma posição mais ativa e faz parte do que lhe vai no interior. Avô e neto aproximam-se num projeto que interessa aos dois.

Nunca devemos subestimar os outros, mesmo que possamos ser diferentes.  A diferença é incentivo para descobrir outras facetas humanas e não forma de segregação. A desvalorização do outro pode não ser mais que uma tentativa de nos valorizarmos a nós próprios. 


Conclusão

Pode haver diferença na forma de pensar, mas será que somos assim tão diferentes?





segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Os Historiadores de Arte - Nós é que sabemos!

Histórias da Longevidade - Entusiasme-se com a vida!

Jota, 22 anos, subia a rua do Carmo em direção ao Museu, onde ia participar numa formação presencial sobre Curadoria. Era o seu grande sonho poder iniciar-se como Curador de uma exposição. Secretamente imaginava exposições e desde a obra do artista até à sala, tudo o que corria na sua cabeça lhe chegava a parecer real. A sua paixão era alicerçar conceptualmente uma obra, como se o artista lhe desse uma mensagem em hieróglifos e ele tivesse de o decifrar, de adivinhar as preocupações do artista, de o contextualizar e depois entregar-se a uma busca interpretativa para conseguir demonstrar ao público a razão da obra exposta. Era como um desenho de Escher, podíamos fazer várias leituras, atribuir significados às formas e apresentar um conteúdo, como se fosse uma tese. Tinha de a saber defender, o que era um desafio, que às vezes partia do nada e construía-se em diferentes caminhos. Escher, que engraçado, lembrava-lhe a conversa que tinha tido há tempos com o avô Manel. Pensou para si, como ele ficou contente por lhe ter dado atenção. Os velhotes não precisam mais do que um bocadinho de atenção, concluiu para si próprio. Coitados, agarrados a livros e ideias com mais de trinta anos, antes de ele ter nascido! E falam das coisas como se os outros perdem-se imenso por não terem lido aquele livro e não percebessem nada da vida, continuou nas suas cogitações. Como pode um velho perceber o Mundo de hoje se é tudo tão diferente do tempo deles. Aquele livro que ele falou, já nem se lembrava do título, mas era um calhamaço, e pensou o avô Manel é cá um cromo!

Chegou ao Museu. Ainda não tinha começado a formação. Jota encontrou a Bia e o Sá, colegas do curso de História de Arte. O tema sobre comunicação do sentido de uma obra de arte ou de uma exposição ao público. Traduzir o sentir e a ideia do artista, contextualizar a obra, despertar no público emoções, pensamentos, inquietações, leituras diferentes e o sentimento final de satisfação do visitante. No intervalo os três amigos discutiam a formação da manhã. Debateram a necessidade de explicar e transmitir aos outros pensamentos e emoções. Não deve cada pessoa fazer livremente a sua leitura, sem ser influenciada pela visão de terceiros. Um curador tinha que saber escolher, saber expor, apresentar o artista e contextualizar o trabalho, mas também tinha de explicar? Jota inclusivamente reprovou as visitas guiadas porque limitavam o campo de interpretação, condicionavam o que se via e nomeavam o que não tinha necessariamente de ser nomeado. Ya, faria mais sentido uma discussão depois da visita do que uma visita guiada, considerou Bia. Como é que se transmitia o significado de uma imagem a um público provavelmente muito heterogéneo? Não devia ser cada um a explorar e a descobrir a imagem? Sá reforçou com um exemplo simples, como é que eu iria explicar uma instalação aos meus avós, eles flipavam com a ideia, nunca compreenderiam, e os outros dois riram. Nisto, um dos curadores do Museu que estava perto e ouviu a conversa pediu desculpa e perguntou se eles não sabiam que as primeiras instalações artísticas ou assemblage, como também se chamavam, remontavam aos anos 20, 30 e 40 do século passado. Eram provavelmente mais velhas que os vossos avós, apesar de só se difundirem mais tarde. Acham que os vossos avós não percebem uma instalação artística se lhes for explicada. Da conversa resultou o desafio do António aos três estagiários de convidarem os respectivos avós a virem presencialmente à inauguração da próxima exposição do Museu, que seria dali a dias. Os três não deixaram de ficar perplexos com o desafio, mas aceitaram. Iriam os “velhos” perceber aquilo? 


breves observações 


Jota é o João da história anterior, mas não era o nome pelo qual o avô o tratava. Logo aqui o neto parece ter duas identidades, a que se apresenta e responde perante o avô, e a que tem para o Mundo. O que vai no pensamento do avô e no pensamento do neto sobre a mesma situação, a visita do João, é muito distinto. O avô convence-se da curiosidade do neto pelos seus interesses e acredita que daqui nasça uma cumplicidade entre os dois, que Manuel tanto ansiava. Jota acha que permitiu dar um momento de alegria ao avô por o visitar e não percebeu mais do que isto. Um acreditou que podia a partir daquele momento organizar futuro que tanto desejava, mas o outro só percepcionou o momento em si. Centraram-se nos seus desejos e desvalorizaram o que o outro sentia.

É muito importante pararmos e darmos tempo ao outro para se explicar e a nós próprios para perceber o que o outro pensa. Não paramos para ouvir o outro, mas também não nos abrimos para o outro.

O problema de fazer passar o sentido de uma obra de arte é idêntico à dificuldade intergeracional. Decifrar uma peça ou entender o outro passa pela mesmo processo que é a comunicação. Assim, criamos com facilidade preconceitos contra a obra de arte, mas pior é contra o outro, que é nosso próximo, que não conseguimos entender. Vamos gerar preconceitos relacionais que não têm razão de existir.

É verdade que as formas de comunicação e o seu valor também mudaram. Hoje dá-se mais importância à imagem e ao som do que à escrita e à leitura. A imagem e o som transmitem uma informação de forma imediata, enquanto a escrita e a leitura são mais vagarosas, mas também permitem a elaboração das ideias. Ou melhor, as ideias são elaboradas de forma diferente e isso origina processos de pensamento diferentes. Mas, tudo pode ser explicado.

Se nos dispusermos para o outro e o percebemos ganhamos com o conhecimento do outro, que é também o conhecimento de nós. Não podemos ser intolerantes e colocarmo-nos na posição de nós é que sabemos.

Será que as diferenças intergeracionais são assim tão grandes? Não ganhamos em perceber os outros? Isso será tão difícil e não pode ser ultrapassado com a curiosidade sobre o outro?


Conclusão

Os preconceitos impedem-nos de ouvir e chegar ao outro. Deixá-los cair é a maior dificuldade.



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