segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

 

O Professor de Matemática - Uma Vida Incompleta


Histórias da Longevidade - Entusiasme-se com a vida!


Manuel, o Professor de Matemática, reformado, de 82 anos, tinha em cima da mesa um livro intitulado “Gödel, Escher e Bach”, comprado em Londres, há muitos anos, numa das suas viagens com a mulher, a sua querida e saudosa Teresa. Um músico e um artista, exclamou o seu neto João, estudante de história de arte, que perguntou quem era Gödel, quando visitava o avô num final de tarde. Manuel, encheu-se de satisfação e com energia explicou quem tinha sido Gödel, figura apaixonante da história da matemática, pilar da matemática moderna, que sempre considerou o seu ídolo. Ele revolucionou o pensamento matemático e aquele livro, que pouco tinha a ver com estas três figuras, põe-nos a pensar sobre muita coisa. A conversa correu com entusiasmo entre os dois. O avô Manuel renasceu das cinzas e de novo o seu pensamento brilhou, o João descobriu um avô apaixonante que desconhecia. Brotou cumplicidade entre ambos que não estava prevista. O neto impressionava-se com Escher e a sua capacidade de representação paradoxal de figurações realistas, que punham em causa o valor da objetividade e da lógica. Nesse dia tiveram que se separar antes da hora de jantar e o Manuel calvo e de cabelos grisalhos entregou-se pensativo a todo aquele acontecimento. Que acontecimento improvável, como ele tinha descoberto afinidade com aquele neto através da discussão do que era o pensamento matemático, que tinha sido o maior interesse de toda a sua vida e que ele por inércia abandonara. Atraiçoara-se a si próprio ao abandonar o pensamento, a leitura, a música, mas sobretudo a partilha com os outros. Faltavam-lhe os alunos, os amigos, as tertúlias e as conferências. Era preciso retomar as relações com os outros, o que seria difícil com o confinamento pela pandemia. Acreditava que o João voltaria. Deitou-se animado, bem disposto, a querer que houvesse novo dia. Levantou-se de manhã, como nos tempos em que dava aulas, com energia e determinação em mudar de vida. Estava a abandonar a vida, a descurar o pensamento matemático, a entorpecer corpo e espírito. Nessa determinação decidiu procurar o que poderia fazer. Telefonou a uma sobrinha com quem mantinha uma grande cumplicidade, que lhe sugeriu que contactasse uma Universidade de Terceira Idade para aí poder dar aulas, o que não lhe interessou por se realizar por transmissão on-line. Precisava de sentir a presença física dos outros e sobretudo queria contactar com gente nova, queria desafios e saber mais da atualidade. Passaram dias e o neto João de ténis e cabelo castanho apanhado não voltou a visitar o avô, que esperava dia após dia, com ansiedade, retomar aquele contacto. Tinha criado muitas expectativas, fez projetos, voltou a ler, quis acreditar que finalmente iria ensinar o pensamento matemático. Iria resgatar o seu propósito, o que achava que não conseguira fazer durante a sua vida como professor. Regozijava em estar vivo, de saúde e com energia para poder concretizar o seu plano. Talvez não se pudesse chamar plano porque só tinha várias ideias que se desenhavam na sua cabeça de forma pouco precisa. Ambicionava concretizá-las e tinha energia e contentamento para o fazer. Com o tempo essa energia foi-se perdendo, o neto não vinha  visitá-lo para evitar contactos com medo da contaminação pelo vírus. Na cabeça do avô estas razões soavam a desculpas dos outros. As manhãs voltaram a ser difíceis, o vazio voltou a instalar-se como erva daninha em jardim descuidado, voltou a pensar em nada, deixou de se interessar. A filha que o visita mais regularmente que os outros irmãos não entendeu porque o pai tinha andado mais expansivo e depois voltara a estar introvertido e quase adormecido. O livro “Gödel, Escher e Bach” continuava em cima da mesa, não para Manuel o ler, mas como testemunho da conversa com o neto e à espera do neto, com a confiança cada vez mais longínqua de que ele voltaria. O livro no cimo do monte de livros começou a ganhar pó.


breves observações 


Somos nós mesmos que temos de ser autores da nossa vida, não devemos nunca esperar que sejam outros a decidir por nós, posição paternalista que é frequentemente adoptada para com as pessoas de mais idade, como se tivessem deixado de ter capacidade de decisão. É cada um que consigo mesmo tem de organizar o seu caminho pessoal com determinação para que possa assegurar a sua autonomia.

Esquecemo-nos de nos interrogar sobre o que queremos e gostamos. O que é que eu gosto ou gostaria de fazer? A plenitude na vida vem do prazer do que fazemos. Precisamos de energia para encetar ou continuar projetos, mas a satisfação que daí vem vai permitir recobrar essa energia e permitir estarmos mais vivos, participativos e sobretudo mais senhores de nós, da nossa identidade.

Caso contrário voamos na nossa vida com crescente consciência do que falhou e ancoramos num sentimento contínuo de perda,  num estado depressivo e não num processo de construção. É um desperdício para o próprio e até para todos.

Claro que não estamos livres de termos de contornar circunstâncias de vida e nem sempre conseguimos concretizar o que colocamos em primeiro lugar, mas podemos encontrar soluções para contornar os problemas e descobrir alternativas de vida.

Ao contrário, como acontece com Manuel, vive-se de expectativas e memórias, expectativas frustradas e cada vez mais vagas. Não conseguimos, assim, nem viver o presente, nem o futuro. Temos memórias e devemos resgatá-las para construir presente e futuro, não para nos perdermos no passado. 

O pensamento matemático que tanto entusiasma Manuel, é o que preside ao exercício da prática matemática, tanto na sua aplicação como na pesquisa e elaboração de novas proposições a partir de corolários para obtenção de novos corolários. Enganam-se os que julgam que o pensamento matemático é fazer contas e que o que preside é a capacidade de cálculo. O pensamento matemático é muito mais do que isso, é abstrato e exploratório, onde tem papel a imaginação e a conjectura, para depois definir e provar. É um processo muito rico em si mesmo e não um conteúdo. Várias outras áreas da Ciência e até das Artes usam procedimentos análogos ao pensamento matemático. Qualquer pessoa interessada e curiosa acaba por usar de forma informal passos do pensamento matemático, sem que se possa chamar de pensamento matemático. O pensamento matemático exige conhecimento e consciência do mesmo e podemos dizer que ajuda muito na vida, mesmo que aplicado de forma informal.


Conclusão

Somos capazes de nos orientar para conseguir fazer na vida aquilo  de que gostamos?






segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

A vida depois do fim


Histórias da Longevidade - Entusiasme-se com a vida!


Manuel tinha 82 anos, reformara-se há 16 anos. Vivia numa casa de cinco assoalhadas, a mesma casa para onde foi morar pouco depois de se casar. A sua vida foi ser professor e pai.  Ser professor obrigara-o a ser eternamente estudante, ou pelo menos, pensando assim, julgava enaltecer a seus olhos o que considerava uma profissão desvalorizada. Professor do Liceu, como se dizia no seu tempo, mas ainda chegou ao tempo de ser categorizado e chamado de professor do Ensino Secundário. Era “sôtor” para os alunos. Tinha saudades das aulas de Matemática que preparava para, logo de manhã, quase todos os dias da semana, enfrentar as suas turmas. Enfrentar nem sempre era o termo aplicável, porque também teve alunos interessados e que acompanhavam as aulas e punham questões. Como tinha sido difícil explicar-lhes que o seu papel não era julgá-los, mas sim ensinar, ensiná-los a pensar matemática. Raramente conseguiu transmitir o que era o pensamento matemático. Os alunos decoravam teoremas e regras, o que era contrário ao pensamento matemático. Tinha de classificar melhor os que obtinham resultados certos, não os que pensavam. Nem aos filhos tinha conseguido explicar.

De tarde dava explicações para conseguir equilibrar a economia da casa e porque alguns alunos eram desafiantes, o que lhe dava gosto. Só mesmo com raros explicandos conseguia ir mais além do que ensinar a deduzir, mas com dificuldade saía do programa escolar. O que esperavam dele como explicador, tanto alunos como pais, eram bons resultados finais, o que só queria dizer boas notas. Era frustrante quando se queria dar mais do que isso.

Nunca conseguiu explicar o que podia trazer de bom para a vida aprender a pensar. Agora, sozinho, na sua casa enorme, pouco acolhedora e descuidada, pensava às vezes no assunto e não pensava em nada. O tempo corria e o pouco que lhe despertava interesse, não era muito. Quer dizer, supostamente tinha muitos interesses, os livros e cedês à sua volta, como se encarnasse o intelectual atento que aparentava uma vida estimulante e preenchida, contrária ao vazio paralisante que o devastava sem se ver. O pensamento semi-congelado povoava-se de memórias fragmentadas, com evocações muito elementares que eram acompanhadas de sentimentos muito pouco elaborados. Tinha ao seu lado livros que nunca lia, que faziam parte da representação que mascarava a pobreza mental. Quando recebia visitas punha em ação esta representação que falseava o seu estado de espírito, em que ele próprio queria e acabava por acreditar. Os netos apareciam e olhavam aqueles livros, na mesa, ao lado da sua poltrona. Admiravam o avô como um homem peculiar, que lhes tinha ensinado xadrez e ouvia alto opera, cantarolando árias ou trauteando excertos musicais. Os filhos, com maior proximidade e cumplicidade intelectual, eram capazes de se aventurarem a observações sobre as matérias dos livros expostos, a que Manuel respondia com tiradas breves. O jogo funcionava e não só era convincente para todos como a ninguém interessava desmascará-lo. Manuel convencia-se, assim, das suas capacidades, o que o valorizava. A família assumia que o pai tinha uma vida preenchida, o que apagava a necessidade de se preocuparem com ele, sobretudo em tempo de isolamento devido à pandemia. Mas, Manuel no seu vazio reconsiderava e nesses momentos de maior consciência de si vinha-lhe à ideia o pensamento matemático e a incapacidade para o transmitir, mas, agora também a incapacidade para dele fazer uso.


breves observações 


A maioria de nós, apesar da poluição, dos estilos de vida pouco saudáveis, do isolamento, das pressões sociais e laborais vive muitos anos e trabalhamos ainda mais. Mas tem-se a impressão que, apesar do maior conforto e condições, não somos senhores das nossas vidas. Temos propósitos, mas esquecemo-nos de nos perguntar o que é que eu quero para mim, o que é que eu gosto, e acima de tudo o que vou fazer do tempo da reforma. A reforma podem ser hoje muitos anos da nossa vida, e podemos decidir não fazer nada. Não fazer nada, como assim?

É um desleixo não prepararmos a reforma. Vamos agarrar-nos às glórias passadas, às memórias, criar um conjunto de afazeres que nos fornecem a ilusão de que estamos ativos e com um projeto de vida e caímos num abandono mental e físico. Neste momento da sua vida pode finalmente fazer o que gosta, o que quer fazer, sem ter de provar ou prestar contas a outros. É um tempo único, um tempo que é seu. Tem consciência da tamanha liberdade que tem nas mãos? Vai saber usar este privilégio ou desaproveitá-lo? O caminho que escolher vai decidir o que será. Vai transformar-se num ser que deixa o tempo correr, sem muitos interesses, com um vazio que vai minando o seu pensamento até que este fique congelado, desleixando o corpo e fornecendo campo para que as doenças possam vingar. Vai permitir que a sua energia vital definhe. Procure energia para reagir e vai ver que lhe traz mais energia. Mais energia, mais satisfação e sobretudo um sentido de futuro. Há amanhã!


Conclusão 

Cada um de nós tem que agarrar a própria vida, mas seremos capazes disso?



  Novas rotinas na nova normalidade Temas da Longevidade   Das consequências da pandemia a mudança da vida quotidiana foi provavelmente...