segunda-feira, 22 de março de 2021

Gostar de si


Histórias da Longevidade - Esquecemo-nos de nós 


O Sr. Luís era muito estimado na terra, fizera do negócio de gado a sua vida e o café, que tinha sido taberna e de que era dono, ajudara. Ajudara a estabelecer contactos, a concretizar negócios, a compor o final do mês até ser como agora a principal fonte de rendimento. O negócio do gado acabara, acabara a pouco e pouco, e Luís não suportou a ideia de limitar a sua atividade a taberneiro, tanto economicamente, mas sobretudo pela perda de prestígio. Ele considerava-se acima dos outros, tinha expediente, sabia negociar, passava a maior parte do tempo fora da terra, e por isso o alcunhavam de Já Foste, o que não diminuía a admiração dos conterrâneos. Quando precisavam de um conselho, de um empréstimo ou de outra ajuda, recorriam a ele. Até o Paxá, alcunha do primogénito da família Ferro, os mais ricos da terra, que viviam em Lisboa, fazia questão de mandar chamar Luís para o aconselhar e privilegiava-o com convites lá para casa. Passar a taberneiro era tirarem-lhe o tapete do chão, apesar de o Já Foste ficar assim mais próximo de todos e com uma vida mais sossegada, que a idade já pedia. A alcunha deixou de se aplicar, mas manteve-se e até passou a ser mais usada, com o convívio mais frequente com os demais. Tal intimidade em vez de lhe ser agradável incomodava-o, e desvalorizava-se por agora se achar como os outros. Ninguém percebia isto e Luís a ninguém confessava o que lhe ia na alma. Mantinha a mesma altivez, quase arrogância, mas não permitia que as amizades se estreitassem. Era para ele sinal de perda do seu estatuto. Para mais tinha a mulher sempre a procurá-lo a toda a hora, o que evitara na sua vida ativa. Estava acostumado a dar-lhe ordens, a exigir serviços, e atualmente era ela que exclamava “Luís vem jantar”, “Luís vai tomar os comprimidos” e pior que tudo “Luís levanta-te, deste em mandriar”. Não suportava ter de repartir poderes naquilo que era até há pouco o território dela, o mini-mercado e o café. Custava-lhe por isso levantar-se para ir atender clientes para o café, que também lhe davam ordens. Tinha o sentimento de ser criado de todos, até a nora Ana não se coibia de lhe fazer reparos. Sentia-se ferido e parecia que enquanto os outros ganhavam folgo com a sua desgraça, ele perdia interesse pela vida, mesmo desejo de viver, e a sua altivez curvava-se a uma velhice súbita e prematura. Nunca se viu com tal futuro, a sua estima nascia do apreço dos outros, da sua vaidade, não vinha de si. Afinal este homem nunca conseguira gostar de si por aquilo que era. Gostava de si por conseguir levar a melhor nos negócios, por ter dinheiro, e quando emprestava tinha o secreto prazer de confrontar o outro com a sua carência, não a alegria de poder ajudar. Como é que podia gostar de si se nem sabia quem era, e como é que podia gostar dos outros se se sentia humilhado por eles. Não conseguia gostar de ninguém. Cresceu nele um amargo constante, a intolerância, a revolta, o desejo de desaparecer, de morrer. Cada vez se levantava mais tarde para não ter de ir para o café, apesar da mulher o instigar a tal, o que só aumentava a vontade de a contrariar. Os longos períodos de cama e de sofá foram-lhe diminuindo a mobilidade, desculpa maior para não ir para o café. Isolava-se e perdia-se sozinho em angústias e recriminações, num sofrimento que ninguém imaginava, que com o tempo se foi anestesiando num vazio e indiferença para o que o rodeava. Todos comentavam “quem viu este homem e quem o vê agora!”, mas ninguém sabia a doença e alvitravam “é a velhice, dá cabo de uma pessoa!”. A mulher levou-o ao médico que lhe pediu análises, mas o Sr. Luís tinha bons resultados. Até o coração estava bem, apesar de se queixar de palpitações e apertos. Emagrecia e não tinha apetite. Marcaram uma consulta em Évora, a capital do distrito. Houve quem dissesse que ele tinha Alzheimer porque fazia confusões das poucas vezes que falava. Quase não andava.


breves comentários 


Porquê o título “Gostar de si” numa história que mostra um homem que, por várias circunstâncias de vida, se foi desinteressando e desligando de viver. Luís fez todo um percurso de vida em que vivia senhor de si, admirado e respeitado pelos outros. Isso enchia-o, mas era isso capacidade de gostar de si? O gosto que tinha por si próprio vinha da admiração dos outros e não de si. O que era um homem aparentemente sólido veio a revelar-se como frágil e dependente da imagem que os outros tinham dele. Quantas pessoas conhecemos assim, que a partir do momento em que perdem o seu estatuto profissional e/ou social não suportam mais a vida e deprimem-se. À depressão no envelhecer é dada pouca atenção na sua compreensão, atribuindo-se causas biológicas, que se pensa se resolvem simplesmente com antidepressivos, mas que têm raízes mais profundas. O resolvermos problemas nossos ao longo da vida, o sermos capazes de nos conhecer melhor, de percebermos o que somos e como somos na relação com os outros, ajuda a sermos capazes de termos mais consciência de nós próprios. E não é a forma como nos construímos conscientemente que permite conquistar consistência pessoal e auto-estima. Luís precisava dos outros para gostar de ele mesmo, mas quando se esvaneceu a imagem que ele precisava que os outros tivessem dele, deixou de gostar de si, ou provavelmente nunca chegou a gostar realmente de si. A isto chama-se personalidade narcísica, como Narciso, que no mito não gostava verdadeiramente dele, mas da imagem dele que lhe era dada pelo reflexo na água. No próprio mito Narciso morreria se alguma vez olhasse para a sua imagem. Luís era intolerante à forma como sentia que estava a ser olhado pelos outros. Não percebia que os outros o estimavam e que provavelmente até apreciavam a proximidade com ele. Luís era incapaz de aceitar essa proximidade, de gostar dos outros como pessoas, da mesma forma que não gostava suficientemente dele. 

Por esta história percebemos que o que somos como pessoas pode ser decisivo na forma como corre a nossa vida, até na doença. E o que nos parece irrelevante num momento da vida pode projetar-se no nosso futuro de forma determinante.


Conclusão

É importante conhecermo-nos para gostarmos verdadeiramente de nós. Se não gostamos de nós quem é que gosta?


 

segunda-feira, 15 de março de 2021

O Lugar


Histórias da Longevidade - Esquecemo-nos de nós 


Aquele pequeno comércio era a alma daquela terra, conjunto de casas à beira da estrada, com uma praça recuada, a igreja branca e simples, a casa que fora do Sr. Padre e que agora servia a paróquia, e passada uma esquina branca estava o café, que era tudo. Ou este tudo também tinha café, naquilo que já tinha sido chamado de taberna. Uma taberna precisa de taberneiro, ora quem tomava conta daquilo eram duas mulheres, assim fez-se café, com cadeiras em vez de bancos, mesas pequenas em vez de mesa corrida e balcão inox em vez do tampo de pedra cheio de segredos e histórias. A porta era coberta por um toldo que anunciava a marca do café. Ao lado havia outra porta que dava acesso à mercearia, que por arrumada em armários com prateleiras se chamava de mini-mercado. Tinha dois balcões em aço inoxidável, um para carnes e enchidos, outro maior tinha queijos, manteigas, leites e afins, ovos, pão, bolos e bolachas. Entre aquelas duas portas tudo da terra se sabia. Da primavera ao outono os visitantes davam mais movimento, e quando um estranho entrava as conversas paravam, para recomeçarem de forma desinteressada, a fingir que não ligavam nenhuma àquela criatura desconhecida, sobre quem havia pouco a dizer. O lugar tinha fama por vender o melhor pão da região, bem como bons enchidos. Quem tomava conta do comércio era Joaquina, mulher que apesar de carregar 73 anos de provações e sem ilusões na vida, se mostrava simpática e faladora, pronta a opinar sobre tudo o que os seus ouvidos alcançavam. Os seus muito ativos aparelhos fonatório e auditivo assentavam num corpo redondo, mas bastante enérgico e ágil para a idade. Como toda a mulher, desempenhava várias tarefas simultaneamente e com a destreza de um malabarista. Cortava e pesava fiambre, indicava o preço do queijo enquanto ouvia e comentava a má sorte da vizinha Adelaide que era desprezada pela filha, a Fitinhas. Quando acalmava o movimento e o lugar ficava vazio, Joaquina suspirava desamparada por sentir o vazio de não ter nada para fazer e atravessava a porta que ligava ao café onde estava Ana, sua nora, que tirava cafés com e sem cheirinho, vendia raspadinhas ou copos aos clientes que se instalavam para comentar e largar para o ar umas larachas. As duas mulheres com agilidade técnica de profissionais cúmplices trocavam as informações da terra e planeavam as refeições e os afazeres. Joaquina, se não chegava ninguém ao mini-mercado subia a casa, na porta ao lado, para olhar pelo marido que tinha Alzheimer. Era o que lhe diziam os médicos e ela estava certa disso. O Sr. Luís deixara de falar e mal se mexia, não colaborava com a mulher, tinha perdido o apetite e às vezes não comia nada ou quase nada. A dona Joaquina cuidava do marido logo de manhã, antes de abrir o mini-mercado, e dava uns saltos a casa durante o dia, apesar de ter o apoio pontual da sua nora para os cuidados de higiene do Sr. Luís. O trabalho era a sua salvação, não suportava estar muito tempo diante do marido no estado em que este estava. Na loja atendia, conversava, arrumava, fazia contas, anotava o que precisava de comprar e o que lhe deviam. Sabia tudo da terra. Rui, filho único do casal, era contabilista e bombeiro, e passava os dias todos no escritório ou no quartel, que ficavam numa das extremidades da terra, longe da mulher e da mãe, para não ter de as ouvir, mas longe também do pai, para não lhe pedirem nem auxílio nem favores.


breves considerações 


O lugar remete-nos para a importância de uma vida inclusiva tanto das pessoas que sofrem de uma doença, como dos que os apoiam. A urbe vai-se modificando e exigindo a adaptação dos que nela vivem, tanto nas grandes cidades como nos pequenos centros urbanos. As mudanças não têm evoluído para a participação de todos e o isolamento social é uma das características mais nocivas para o bem estar tanto das pessoas como do grupo urbano. O desaparecimento das tabernas, que deu lugar aos cafés, permitiu que a mulher e as várias gerações se cruzassem num lugar que era território dos homens adultos. Da mesma forma que houve uma evolução na inclusão do género, também houve a nível de gerações, o que permitiu um maior contacto entre as diversas fachas etárias, com o que isso tem de positivo, mas insuficiente. Nota-se nesta história quanto era importante o trabalho para Joaquina, pois aliviava-a do peso de cuidar do marido, e era a sua forma de estar ativa e incluída socialmente. Mas, quem tem doenças, sobretudo nos de mais idade, vê-se excluído pelos outros e tem pudor em aparecer. A exclusão social é um dos maiores males para a condição humana, mesmo que ligeira e discreta. É a desvalorização da pessoa perante os outros e para si própria. O confronto e aceitação entre as várias gerações, géneros, estados de saúde física e mental, e todas as diferenças que caracterizam a riqueza da espécie humana é condição essencial para o bem estar social, mas também pessoal. O Sr. Luís se tivesse mantido uma vida de maior participação social, seguramente estaria melhor de saúde e com capacidades mantidas, como veremos na continuação desta história.

Por isso é que se luta cada vez mais pela inclusão das pessoas, não só os de mais idade, capacitando-os a desempenharem papéis sociais ativos, como os que têm doenças degenerativas como a Doença de Alzheimer. Não há nada mais estimulante, física e mentalmente, que poder viver a vida em todas as suas dimensões. Porque é que perdemos o sentido de família e de tribo para um Mundo de grupos que excluem os que não lhe pertencem, mesmo que sejam seus iguais e até família. Aproveitar as capacidades de cada um valoriza a pessoa e permite que ela contribua para o bem comum. A isto chama-se Ecologia Social.


Conclusão 

Somos capazes de viver uns com os outros e aceitarmos as diferenças até na doença?


 

  Novas rotinas na nova normalidade Temas da Longevidade   Das consequências da pandemia a mudança da vida quotidiana foi provavelmente...